terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Espera...

Espero uma amiga à porta da universidade. Espero trabalhando, arrumando fotos e respondendo a emails atrasados. 
Dou-me conta de um movimento de caminhantes sem pressas, sou estranhamente despertada por ele, um despertar diferente daquele a que estou habituada. Um despertar inverso ao que reconheço em mim. Não assusta, não abana, não me faz reagir muscularmente... E no entanto desperta-me, retira-me do que estou a fazer... Permite-me ser tocada por outro ritmo tão diferente do compasso em que me acerto e me reconheço nos dias.  
Toda a gente se move lentamente debaixo deste sol. Mesmo que a aula já tenha começado não há urgência no andar, não há sofreguidão nos passos nem velocidade nos gestos. Estive bastante tempo e não vi uma única pessoa a correr. 
Ou vêm todos demasiado cedo ou isto do tempo não lhes toca como a mim.
Olho para mim. Olho para o que corro diariamente e reconheço-me acelerada e forte. 
Dou-me conta que nem o meu esperar é esperar... Encontro sempre o que fazer, o que ler, o que escrever... O que pensar ;-)
Olho para mim e desejo este desaceleramento interior, explorar o movimento slow que tanto admiro. Acolher o ser caracol que há em mim e deixar-me deslizar na vida. Sem pressa, como estes que vejo seguirem para as aulas já começadas.
Ao mesmo tempo que observo o ritmo de quem entra, toca o telefone. Atendo. E combino com uma amiga ir correr no estádio depois do trabalho. 
Contradições, paradoxos e incoerências que me queimam os sentidos e me iluminam a alma. 



sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Perguntas secretas…

O site das finanças tem uma forma muito "humanizada" e profunda para confirmar a nossa identidade e recuperar dados. Louvo as escolhas das "perguntas secretas" que incidem na sua maioria em matéria cultural e recreativa normalmente não dedutivel em sede de IRS. Talvez estejam a pensar em algum incentivo fiscal às artes, ou seja um estudo a longo prazo para justificar o 1% do próximo orçamento de estado para a cultura. Seja como for parece-me inteligente a estratégia de usar como alavanca na identificação singular no sistema tributário a literatura, o teatro, a música, ou o cinema tão desprezados noutras opções estatais.  
Confesso que ficaria muito mais aborrecida que me perguntassem pelo mecânico ou cabeleireiro preferido, marca de carro ou hipermercado de eleição ou animal de estimação, podendo parecer mais coerente, encontro lógica não se seguir por este caminho, afinal estas não seria perguntas secretas, porque as finanças teriam alguma forma de saber a resposta.
Voltando às perguntas reais, colocam-nos de facto mais perto do que nos caracteriza e distingue enquanto pessoas, e atrevo-me a dizer que, no que toca ao que se pode fruir, nos aproxima do que é essencial para alimentar o corpo e o espírito, contudo no meu entender parte de um princípio um pouco perverso. Imaginam os senhores das finanças que nós nunca mudamos.
Devem partir do principio que entrando nós num sistema justo de redistribuição de riqueza nunca teremos poder de compra ou liberdade mental para superar o ordinário dos dias e vislumbrarmos novos horizontes.
Isto tudo porque eu já não sabia que pergunta tinha escolhido há 13 anos, a quando do meu registo na plataforma. O meu destino de férias preferido em 2004 pode ser o mesmo hoje?
Qual a minha cor preferida? E se estava naqueles dias em que me apetecia "atrapalhar e ser engraçada" e dizer todas, ou arco-íris… Naquela altura eu gostava de amarelo, hoje talvez esteja indecisa entre um amarelo torrado e um verde seco, o que escreverei daqui a 5 anos?
E se a pergunta é, qual o meu livro preferido? Em nenhum sítio aparece o ano em que fiz esta escolha (a menos que consiga entrar para alterar os dados e aí já não preciso desta resposta). Bom, de 2004 para cá já li pelo menos mais de 30 livros dos quais gostei, muitos deles melhores do que tinha lido até então e de certeza a minha resposta de hoje está aqui neste conjunto e não no noutro.
A pergunta devia ser: qual o seu livro preferido até 2004? E pronto eu faria imediatamente outro exercício de flashback e upsss! Talvez nunca chegasse à resposta certa porque hoje raleio livros que li quando era jovem e uns surpreendem-me mais que na altura e outros me desiludem profundamente. Claro isto só acontece comigo e o problema é inteiramente meu, porque não se pode agradar a todos os excêntricos da vida,muito menos num site das finanças. Ninguém me manda reler nada e o que eu tenho de fazer é escolher uma pergunta simples uma resposta para toda a vida, e não estar aqui com devaneios.

A pergunta que eu escolhi foi: Qual a minha peça preferida? Acho que ninguém ia pensar que seria a peça de roupa, pois não?
Em 2004 teria mais ou menos oito anos de visitas regulares a teatros, de 2004 até agora passaram treze anos… Em treze anos vi mais espectáculos, felizmente tive mais poder de compra (sempre reflectido nas declarações anuais de IRS) para ver outras produções e mais liberdade para entrar em propostas mais arriscadas ou fora dos circuitos. Mas pronto Tchekov é Tchekov e As Três Irmãs, ainda um texto que ecoa emocionalmente em mim sempre que volto a ele, e em todos os palcos. Confesso que se não fosse um amigo a lembrar-me da resposta talvez ainda hoje procurasse os critérios que usei naquela altura, e por isso é que ajuda (mesmo on line) ir às finanças acompanhada. É a história da humanização...

O que eu gostava de dizer aos senhores das finanças ou pelo menos o que os senhores das finanças suscitaram em mim própria, é que as perguntas são bonitas, sim senhora, ajudam a humanizar um site que é funcional e cómodo, mas que infelizmente tem a perversidade de substituir muito do apoio que pode ser dado com um sorriso àqueles que não têm internet. Por outro lado, e este é que o ponto que mais me toca, prevê que nós nos mantenhamos os mesmos, ignora que crescemos, evoluímos e que em 10 ou tantos anos possamos ter mudado de gostos, de autores e de destinos preferidos. No meu entender, seria um óptimo sinal para a economia portuguesa que tal acontecesse.
Por isso uma das sugestões é de que os programadores programem estas perguntas para que em algum lado apareça o ano em que foram respondidas, a outra sugestão é que tenhamos a possibilidade simples de as alterar assumindo e desejando que nos possamos reinventar e espantar a cada dia com novos destinos, cores, espectáculos ou livros, que cada vez nos surpreendam mais e que amemos mais. 
Também podem deixar tudo na mesma, afinal as pessoas não mudam assim tanto e como diz o meu amigo daqui a uns tempos seremos identificados para íris (e eu imagino que pelo cheiro), ou apenas incluir estas perguntas que talvez sejam mais difíceis de responder:
"Qual é a repartição de finanças preferida?" ou "Sabe para onde vão os seus impostos?"

Para o caso de alguém ficar com dúvidas ou ideias parvas informo que mudei a minha pergunta e claro está a resposta. Espero não me esquecer disso e voltar a mudar em breve.



terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Pistolas...

O caminho para o trabalho é feito de olhares e silêncios de sorrisos e de vazios... E de perplexidades. Há sempre muitas crianças na rua. Estou num nos países com uma das maiores taxas de natalidade do mundo e há sempre muitas crianças em todo o lado. Há dias cruzei-me com um menino que teria entre os oito ou os dez anos e na mão direita tinha uma pistola. Algo parecido com uma 9mm mas mais pequena e assim talvez tivesse menos milímetros... Uma pistola de plástico. Talvez uma pistola de fulminantes. No seu lado esquerdo acompanhava-o o amigo que segurava um saco de plástico por cima do ombro esquerdo. Iam descontraídos e como sempre eu seguia apressada... Talvez a pistola funcionasse com pequeninas pedras porque o vi parar para apanhar algumas do chão.
Eu tentei abrandar o passo mas ia embalada no meu ritmo de quem corre sempre para algum lado... Queria continuar atrás deles mais algum tempo, contudo era-me impossível parar com tempo, conhecem aquela sensação de parar um camião em andamento? Eu era o camião.
E na minha ultrapassagem pela direita ainda vi o miúdo a sacar da pistola, estender o braço levantá-lo à altura do ombro e fingir que atingia com um tiro, que lhe saia da boca, um outro miúdo que estava no lado oposto da estrada e que se dirigia a ele com alegria. 
Fiquei com um nó na garganta... Ou no cérebro. Lembro-me de ouvir o filho de uns amigos meus, pacifistas e sempre cuidadores da educação dos pequenos, dizer aos vinte anos que uma das coisas que mais o marcou na infância foi não poder brincar com pistolas com os amigos, porque o pai o proibia... e dizia isto com mágoa.
E lembrei-me dos índios e dos cowboys, dos piratas, das corridas e das apanhadas... 
E já de costas para os miúdos pensei que aquilo daria uma imagem fantástica, daqueles que ganham prémios no World Press Photo, que chocam e desinstalam o nosso lado burguês que apenas vê o mundo de um ponto de vista. Do ponto de vista certo, limpo, lindo, arrumado e feliz. 
Sei que também eu tirarei todas as armas aos "filhos" que me forem aparecendo na vida, e ainda assim o que desejo é não ser eu a apontar "armas" a quem brinca com elas, nem me "armar aos cucos" em assuntos que vão para lá do óbvio. 



terça-feira, 17 de janeiro de 2017

De_coração...


Já ouviram falar da África Ocidental? É composta por 16 países, Benim, Burkina Faso, Cabo Verde, Costa do Marfim, Gâmbia, Gana, Guiné, Guiné-Bissau, Libéria, Mali, Mauritânia, Níger, Nigéria, Senegal, Serra Leoa e Togo. Dados da Wikipedia.
Uns são banhados pelo oceano atlântico, outros pelo deserto do Saara, outros pelas outras Áfricas irmãs. Esta é uma parte da África subsariana, uma parte de uma África que também é chamada de África Negra.
Uma miscelânea de culturas, etnias, histórias e um exagero de terra, céu e gentes…
Já ouviram falar de O Livro da Selva? Foi escrito em 1894, treze anos antes de Rudyard Kipling ganhar o prémio Nobel, o autor indiano que cresceu numa família inglesa, (tal como o Mogli cresceu com uma família de lobos). Há cinquenta anos a Walt Disney estreia o filme que adaptou parte do livro ao cinema. Conhecemos a selva indiana onde o Mogli cresceu.  Um menino corajoso que respeita a natureza e está do lado do bem… Defende com a sua vida valores como o fidelidade e o amor por quem sempre o ajudou, e sabe comunicar com animais.
A história é bonita e encantou… Influenciando os da minha geração e da minha cultura, maravilhados por pequenos “tarzans”, bons selvagens que nos aconchegam as mantas e habitam os sonhos, saltando livres e felizes de liana em liana.
E este é o meu enquadramento… Um clássico que ofereço ao meu afilhado quando o encontrar a bom preço numa feira do livro.
E depois desta introdução, entro no melhor hospital pediátrico de Bissau, e o que é que eu encontro?
Claro está! O Mogli, os seus amigos e muitos dos desenhos da Disney como o rato Mickey, a Mini, o pato Donald, e tantos destes intemporais clássicos das nossas vidas.
Eu percorro o hospital e a cada parede ver o Mogli e mais tarde encontrar uma menina que deve ter saído de uma versão falhada dos gremlins, deu-me assim um certo mau estar… E não era eu que estava doente.
Respira miúda e bebe água, o melhor remédio para tudo, diz-me sempre uma das minhas metades. Claro que não há em Bissau espaço melhor que este, mais arrumado, limpo e colorido, onde tudo está o melhor possível com duas grandes televisões e comodidades que fazem sentido em qualquer espaço na Europa.
E como é bonito ter havido um voluntário generoso (sim porque se este fosse um trabalho pago a minha outra metade estaria a hiperventilar) que tirou dos seus dias na fria Europa para pintar as paredes e construir com o seu tempo e dedicação o melhor hospital pediátrico de Bissau. O Walt Disney escreveria a partir daqui, uma bela história de amor por África e pelos pobrezinhos. Mas como já morreu vou continuar eu a dizer o que exigia ar e água.
Ninguém se terá questionado de ter uma criatura descorada, como o Mogli, num hospital da África Negra? Ninguém alguma vez pensou que isto pouco tem a ver com as referências das crianças que nunca viram um filme e estão demasiado longe das selvas indianas desenhadas por americanos? 
Não claro que não, imagino eu, num diálogo entre as duas que me habitam (feliz por aquele não ser um hospício, se não já por ali ficava). A outra de mim diz-me:
- Repara que os miúdos vêm coisas giras e coloridas, que todos os meninos em toda a parte do mundo vêm e gostam.
- Hummmm, não sei, talvez tenhas razão... Mas tu sabes que os elefantes Indianos são diferentes dos Africanos e os podemos distinguir pelas orelhas? E tu sabes que há histórias de meninos africanos que também podem ser contadas? Conheces o Kiriku, talvez fosse mais ajustado, se era um elemento decorativo que se procurava?
- Não comeces a inventar, está ou não está bonito?
- Está limpo, sim… E muito perto que do que eu costumo ver em Portugal ou Itália, em qualquer infantário suburbano e por isso me "entra" bem… Mas também me choca, choca-me porque estas crianças têm poucos estímulos visuais e todos os que "vêm salvar África" têm de fazê-lo pelo mais alto patamar e não pelo mínimo denominador comum. 
É preciso que estas crianças em vez de ursos polares e peixes balão vejam também as tartarugas verdes que desovam em Poilão, ou os hipopótamos de Orango. Se queres uma floresta fala-lhes dos Matos de Cantanhez, último reduto das florestas húmidas, e se queres uns macacos mostra-lhes os que passeiam nas savanas do Boé ou os Chimpanzés de Cufada. Podes fazer "mobiles" ou desenhares os milhares de pássaros coloridos e surpreendentes que passam por aqui todos os anos. E peixes? Queres falar comigo de peixes num país com mais de oitenta ilhas? Se queres estimular a relação e aliviar os tempos de espera, desenha “twists” no chão ou nas paredes para que brinquem com os pais e se distraiam estreitando laços. Se queres decorar os espaços, então usa jogos de cores onde eles descubram formas, nuvens onde inventem histórias e texturas onde se possam perguntar…
E lá estava eu embalada a falar comigo como se fosse a outra metade de mim que tivesse desenhado o Mogli e a prima dos gremlins, e na verdade foi. Foi alguém como eu que o fez, com muito boa vontade e a melhor das intenções, alguém que tem a minha cor mental (mesmo que não seja por fora), alguém que tem um jeitinho parecido com o meu e gosta de intervir nos espaços… Alguém que teve o azar de não estudar na mesma escola e a sorte de não ter a minha outra metade, que me dá sempre na cabeça e me faz perguntar para que serve isto tudo? É relevante para quem? Acrescenta o quê aos outros?
E depois ficamos as duas a olhar uma para a outra e a fã do Mogli diz com um sorriso feliz e confortado pela obra feita – É para ficar bonito e toda a gente gosta!
- E porque é que não fica? Olha bonito, bonito era ires pintar isto para o teu quarto, isso é que era bonito. E mais bonito era olhares para o que te rodeia com outros olhos, mas preferes fazer como o chimpanzé que tira o peixe da água para que não morra afogado… e não digo mais nada que felizmente chegaram os resultados das análises e já podemos ir embora. 
Não é paludismo.








sábado, 14 de janeiro de 2017

20 anos...

20 anos de estágio é algo muito bom e não é só no que toca a whisky ou vinho Porto.
Fazer 40 anos significa que vivi coisas conscientes e assumidas há mais de vinte, tenho amigos a sério (e dos bons) há mais de vinte anos, carta há mais de vinte anos… Fiz um curso sem computador, ouvia música no gira-discos, discava números, via patinagem artística na televisão, lembro-me de estreias que agora são clássicos, e participei na impressionante mobilização por Timor ou nas "manifs" contra as propinas.
É bom pertencer a uma tal geração X que acredita que o melhor está para vir, porque se compromete e envolve nisso.
Estes anos trouxeram muita coisa boa, muita coisa linda, muita coisa feliz e muita outra coisa! Trouxeram tudo o que levo na bagagem (o Pessoa diz isto mais bonitinho, é só procurar). Olho para trás e sou profundamente grata ao mistério da vida e aos milagres que me aconteceram, ao amor, aos perdões que consegui conquistar à consciência (e aos outros), e ao desprendimento que vou treinando (ou desejando) em cada passo.
O que mais me espanta são os milagres em forma de gente que foram e vieram neste mar de tempo. Umas de passagem, umas para sempre, umas que regressam com as marés, outras que eram para sempre e se afundaram, umas que não eram nada e passaram a ser, e já amo aquelas que ainda vão ser trazidas pelo vento.
Nestes vinte anos de tempo, nesta maré de vida que segue as luas e as estações, foram as pessoas os verdadeiros milagres, a partícula de Deus. Os verdadeiros portos de abrigo, embarcações seguras e remos fortes que possibilitaram dar novos mundos ao meu mundo, chegar a sítios nunca dantes visitados. Foi com gente real que tracei o mapa que me conheço… Gente feliz e gente triste, gente boa e gente à procura. Gente linda. Gente que me desinstalou, que amei e perdoei, gente que é de todo insubstituível na minha geografia.
Muitos não mais ouvirão falar de mim, uns terão más recordações, alguns quererão ainda entrar no barco e outros nunca sairão de mim como eu nunca sairei deles.
É isto que é fazer 40 anos… Conseguir rir das piadas de solteironas ou das músicas do Roberto Carlos, e dizer em voz alta, eu estou aqui e amo o que sou. Eu estou aqui inteira e feliz para o tempo que vier, sejam horas ou anos. Daqui até aos sessenta são mais vinte que se adivinham poderem ser ainda mais rápidos do que aqueles que me trouxeram até aqui… A sorte é que para os vivermos vamos ficando menos ágeis… menos rápidos na corrida e mais tranquilos de coração. O desacelerar é uma das grandes obras da criação…
Aos amores e desamores, a quem ralhei e a quem abracei, com quem ri e com chorei, a quem desiludi e a quem surpreendi, com quem caminhei, caí ou voei… Com todos celebro a vida e agradeço o tanto bem recebido, agradeço o que aprendo e o tanto que ainda está para aprender.
Nesta maré viva em que o presente é o mais eterno dos momentos, só faz sentido dizer obrigada e sorrir. Amo-vos, amo-me e quero que cresça em nós esta lamechice de nos sentirmos perto, vivos e livres todos os dias. Obrigada pelo mar que são em mim. Estamos todos de parabéns. Obrigada. 




sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Porquês...

Há muitos adultos na idade dos porquês. Viver aos quarenta aquilo que é ajustado viver aos quatro anos é muito mais comum do que imaginava... Com estes adultos em “período pré-operatório” (roubado a Piaget) é impossível manter uma conversa linear que cresça e se aprofunde na confiança e na partilha. Todo o discurso é interrompido pela suspeita...
Sim, aquilo que me parece que distingue estes adultos das crianças é a suspeita… Quando uma criança nesta altura pergunta alguma coisa move-a a vontade de conhecer coisas novas, aceita a resposta, mesmo que não a retenha ou compreenda. É uma identidade em construção, um adulto na mesma fase é uma identidade em afirmação. Quando um adulto está nesta fase de desenvolvimento, mesmo que retenha ou compreenda, nunca ficará satisfeito com a resposta e voltará ao porquê como se nada houvesse sido explicado ou partilhado.
Claro que é dos porquês que se alimenta a ciência, o conhecimento e quem sabe a evolução da espécie. E ainda assim problematizar tudo de forma autista que pouco interesse mantém nas respostas que não sejam aquelas que certificam uma teoria previamente definida, é um pouco cansativo e não leva à evolução de nenhuma das áreas do conhecimento humano... a não ser a ironia ou a paciência.
Sim, porque nesta altura não é a curiosidade do cientista nem da criança de quatro anos que alavanca o "porquê"… É antes a busca de protagonismo, e um afirmar de um sistema previamente estudado que se quer ver edificado não pelo diálogo mas pela força. Não se procuram debates mas confrontos, não se procura partilha mas imposição, não se procura o outro mas a si mesmo.
O porquê do Natal, das diferenças de género, do mal no mundo, o porquê da fé, do amor, de haver ou não haver gente feia, bonita ou assim assim, (…) ou da cor rosada nos camarões depois de cozidos. O “porque sim” é algo impensável e uma resposta com base no que pensas, defendes, vives ou diz a ciência, é sempre rebatível… Todas podem estar erradas para estes adultos que têm em si as únicas respostas possíveis aos seus porquês, embora tenham a generosidade e a insistência em “ouvir” a opinião dos outros.
Tenho cá para mim que, a grande vantagem de crescermos é aceitarmos que nem tudo se explica… Que há coisas que podem ser assim porque sim ou porque não. Sem palavras ou teorias. Que há espaços entre as respirações. Que há silêncios.
Acredito (de crença) que aceitar o abstracto da vida seja um acto de maturidade.
Também começo a pensar que estes adultos (pseudo) curiosos talvez tenham sido muito enganados quando tinham quatro anos. Não sei, mas cheira-me… E se me perguntares o porquê desta ideia, direi que é pura imaginação. Posso?


quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Cadernos...

Tenho um caderno com notas… um caderno na cabeça que uso sempre que vejo uma coisa que me chama a atenção (e são tantas). Com o tempo vou conseguindo ficar cada vez mais imóvel a anotar, sem mexer um único músculo sem desviar o olhar sem sair do momento… Hoje no táxi o motorista, talvez ao ver-me assim tão imóvel e espantada a tirar as minhas notas, disse-me com um sorriso como que a explicar o que eu via: 
- É África. 
Eu sorri para ele e queria dizer-lhe: 
- Não é África, não, amigo. É a Guiné-Bissau, mais que isso é Bissau, e mais que isso ainda, é a Rotunda da Chapa com o mercado da Fuca ao fim do dia. África não é isto, África é também isto. África é muito mais que isto e com isto se faz… Não amigo, isto não é África, África é muito maior.
A Fuca é o mercado da reutilização. O mercado dos Fardos em Moçambique e tantos outros que ainda não conheço… o comércio que elimina o excedente de uns e destrói a industria de outros.
Os do norte pensarão descansados e felizes: Que bom que alguém acaba por gastar as solas dos sapatos que pouco usámos, ou as camisolas de inverno que passaram de moda…
À luz de lanternas apregoam-se chinelos e gorros a “cenfran” e passa gente curiosa em tocar e experimentar a mercadoria que se amontoa no chão em cima de plásticos rectangulares que ocupam todo o passeio.
Retenho aquela azafama-me que surge com as primeiras estrelas e provoca o engarrafamento na Chapa. Respiro com dificuldade tal a concentração de dióxido de carbono no ar, volto ao meu caderno e permaneço imóvel, não vou dizer nada ao taxista, mantenho-me a olhar e rabisco milhões de contradições até que o carro começa a andar mais rápido e me esqueço de tudo, desejosa da aula de yoga e dos alongamentos que me farão entrar no silêncio de mim.


segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Baratas…

Matar uma barata é algo violento para mim, imaginem para a barata.
Quando estou acompanhada a coisa fica mais fácil porque eu posso gritar, saltar um pouquinho, esconder-me naquele ar feminino e sensível que também é meu, e há sempre alguém mais forte que avança e trata do assunto. Quando eu estou com alguém que tem a sorte de começar com este estardalhaço primeiro, aí sim, eu tenho de assumir o papel do mais forte a acabar implacavelmente e impecavelmente com o assunto.
A vida tende sempre para um cinza médio, nós estamos no meio e ajustamo-nos… Se há alguém mais fraco nós somos mais fortes… E vice-versa… Uma das graças da vida é a de estamos sempre rodeados de pessoas diferentes, o que faz com que para uns sejamos fortes e para outros sejamos fracos. Uns protegemos e outros protegem-nos. Não sei como é com as baratas.
Quando estamos sozinhos e principalmente quando me encontro sozinha com uma barata… Enfim, a coisa complica, e ainda assim assumo que eu sou a mais forte e uso do meu poder.
Faço aquele gesto nervoso de "não sei se vou, não sei se fico”… ai que tenho de ser rápida, ai que é agora… tiro o chinelo faço pontaria, dou grito abafado, fecho um olho e lá vai. Crrrraaaaccc!!! Um som seco de algo estaladiço a esborrachar.


Bom, o pior que pode acontecer, e garanto que acontece, é a barata fugir para baixo de alguma coisa que depois de afastada não a mostra. Aqui imagino que ela é a encarnação do Houdini, sabendo como se libertar no último momento, e calço o chinelo, afinal "o que os olhos não vêm o coração não sente" e neste caso é mesmo verdade, ou pelo menos faço por isso.

Consumado o acto chegam as consequências… O primeiro passo é ir buscar outros chinelos. O segundo é imaginar que por artes mágicas o cadáver, entre o chão e a sola, subirá ao céu em corpo e alma e lá provará os prazeres do paraíso que tantas vezes adiou aqui na terra. O outro passo importante no imediato para superar o choque é não pensar mais no assunto e fingir que nada daquilo aconteceu. Até voltar a passar no corredor e ver o chinelo no mesmo sítio. Imagino que, não o ver seria ainda mais estranho, mas isso nunca me aconteceu. Dez vezes depois, entre beber água e ir à casa de banho, sou obrigada a tomar uma atitude, penso que não tenho 7 anos, que a barata (e felizmente o chinelo) não vai desaparecer e eu terei de enfrentar o assassinato que conscientemente perpetrei (talvez não entre na categoria de premeditação, mas sim de azar… É estar no sitio errado há hora errada, tanto para quem mata como para quem morre).

E lá vou buscar a vassoura e a pá e faço o cortejo fúnebre até ao caixote do lixo, séria, serena e rápida. Penso que "já está" e "já passou", penso no Kafka, por alguns instantes não penso em nada. No fundo desejo que este momento não se repita.
Será que é esta a atitude que temos sempre que damos de cara com a morte, quando matamos algo em nós?


NOTA: Por razões óbvias este texto não tem imagens.

sábado, 7 de janeiro de 2017

Sábados...

Gosto de todos os dias da semana... e gosto particularmente dos sábados! Para ser verdadeira, os sábados são os dias de que mais gosto... Não falo dos sábados que parecem dias de semana ou domingos, não os sábados nas férias ou quando estou de viagem. Não são todos os sábados do calendário... Não falo dos sábados dos casamentos, da festa da aldeia, do passeio de clássicos nem da maratona da empresa. 
Não sou judia nem evangélica e por isso a dimensão sagrada deste dia vem da possibilidade de nele caber tudo, mesmo o nada.
Os sábados ordinários. Os sábados que permitem que não me preocupe com as horas a que me deito na sexta-feira, ou que me preparam para um noite sem horas. É aquele dia da semana em que o despertador toca para poder despertar apenas superficialmente.
Ter a manhã para sonhar, entre um rebolar na cama, tomar o pequeno almoço e voltar a deitar com um livro na mão que não é obrigatório acabar... leio até querer, até adormecer... voltar a acordar, voltar a ler, a comer... pegar no computador e ver só por ver, pegar no caderno e escrever...
Não ter de tomar banho, pentear ou vestir roupa... lavar os dentes sim e dormir a sesta, meditar... não me ouvir nem ouvir ninguém. Ficar.
Gosto de rituais, agendas, programo coisas e tenho sempre onde ir... contudo é o sábado que dá gosto e sentido ao que vivo com avidez... é o poder não fazer nada por opção, por gozo, por puro ócio, luxo, prazer ou simplicidade.
A minha vida tem de ter sábados... como tem de ter domingos e segundas e todas as feiras onde me vendo e compro como sou e o que sou. E nos sábados sou e não sou. Estou e não estou...  durmo, acordo, sonho, vejo, escrevo... e fico feliz e grata por não querer fazer nada, por fazer tudo por mim e comigo como se eu fosse a pessoa mais importante para mim e me bastasse para ser feliz com fruta no frigorífico e lençóis lavados. 
Os sábados são assim, entre o sagrado e o profano onde me encontro e partilho comigo própria. São tão bons por isso, são fundamentais por isso. Eu sou o que sou graças aos sábados. E ainda bem. Gosto.



Conversas que tenho comigo

Há uns dias ouvi falar sobre públicos de cinema num sítio onde não há uma sala com programação regular ou onde os filmes não se apresentam ...