sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Conversas...

É sabido que não falamos de tudo a toda a gente, que há conversas e assuntos que não se abordam com todos os nossos amigos… há pessoas do Sporting a quem não podemos falar do Benfica, pessoas de direita a quem não podemos falar da esquerda… e fazemos isso de forma natural e sem pensar. 
Ajustamos-nos para evitar algum desconforto ou confronto, quando desejamos viver comodamente nos “cafés ou almoços” ocasionais com gente bonita que desejamos perto. Quando o "não falar" é tranquilo e não se reveste de importância identitária para nós, tudo se mantém normal, socialmente e superficialmente confortável.
O aborrecido é quando aquilo que nos é natural tem de ser a todo o tempo suprimido… Quando o “não falar” ou “o falar” sobre alguma coisa se torna violento interiormente.
Quando entramos neste nível, em que o “não falar” e “o falar” têm o mesmo peso e requerem o mesmo esforço, aqui está a deixa que mostra não fazer sentido o “café ou o almoço”, deixa de fazer sentido a relação nestes moldes de "partilha" e proximidade.

Mantém-se a admiração, o amor, o carinho e desaparece a comunicação. 
Aqui a melhor e mais sábia solução é a distância, a memória e o sorriso por alguém que nos ajuda e desafia a crescer e a afirmar o que somos, pensamos e defendemos no momento. Na certeza que tudo isto muda de um dia para o outro.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Padrões..


Bissau, 18 de Janeiro de 2016

Em quatro meses na Guiné-Bissau, procuro padrões, procuro repetições que me ajudem a encontrar reconhecer a cada dia, um espaço mais familiar e mais próximo de mim própria. Quatro meses de um país completamente novo ainda não me permite identificar com clareza um padrão.
Encontrei algumas coisas, coisas se repetem nas minhas caminhadas para o trabalho, para o mercado, no regresso da missa, nas idas ao Bandim… 
Não há dia em que não ande a pé, não há dia em que não veja um homem a urinar na rua, não há dia em que não veja uma borboleta, não há dia em que não sinta o cheiro de algo que queima longe ou perto, não há dia que não ouça o som da vassoura a varrer o chão de terra... Vassourinhas pequenas feitas de junco que exigem as costas dobradas para chegar ao chão. 
Os sentidos estão abertos… E tudo tem uma dimensão diferente daquela que teria na minha cidade. As borboletas que sempre entendi como indicadores de boa qualidade do ar, voam abundantemente nesta capital, onde muitos táxis e toca-tocas, azuis e brancos ou azuis e amarelos, libertam estrondosas quantidades irrespiráveis de dióxido de carbono. As fogueiras ajudam a controlar os lixos e são uma forma de incineração “caseira” que controla a sujidade nas ruas e dá um tom fumado à paisagem. A terra varrida faz-me lembrar a minha infância e as brincadeiras que tinha na escola quando fazia casinhas com muros de folhas de oliveira, quando brincar aos pais e às mães fazia parte do meu padrão diário de aprender a ver o mundo e a ser gente.

Bissau continua a ser a cidade onde procuro rotinas, para continuar a crescer e aprender a ser mais pessoa, mais inteira, com gente nova todos os dias, num ano novo que desejo com belos e coloridos padrões para todos os sentidos. 



terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Viagens...

A caminho da praia que fica a quase 5 horas de viagem (em condições normais)... O carro onde viajava com as minhas amigas, estragou-se (ficou sem óleo dos travões, porque os muitos buracos estragam os amortecedores e estes, estragados, rompem os tubos). Depois de alguns telefonemas de uma assistência em viagem feita de amigos, parámos no meio da estrada numa povoação onde havia uma "oficina".
Fiquei na berma a ver os miúdos que vinham da escola e as mulheres que vinham ou iam para algum lado... a dada altura passaram duas mulheres de burca. Uma das senhoras cumprimentou um dos homens que fazia parte do ajuntamento que arranjaria o carro.
Depois de passarem, ele disse num português muito "macarronico" que eu ouvi mais ou menos assim:
- Sabe, tem de ser ela a cumprimentar, eu conheço-a mas se ela não me cumprimentar eu não sei que é ela.
Sorri com aquela cara de quem espera mais conversa mas que deixa o outro seguir como e para onde quiser... Ele continuou:
- Sabe ela tem de andar assim, porque assim ninguém a vê, só ela é que pode ver por aquela (e fez o gesto... ficou um silêncio... imagino que deixou de falar da mulher e começou a filosofar)
- Dizem que se os homens vêm a Beleza se apaixonam por ela. E por isso as mulheres devem andar tapadas. Assim ninguém vê.
Eu sorri, queria mais conversa mas não queria perguntar fosse o que fosse, não me queria mexer, nem ouvir a minha voz num português tão diferente daquele, que iria mudar a conversa porque efectivamente não falamos na mesma língua e eu levaria a conversa para o meu horizonte.... e só queria ouvir o momento... ouvir aquele homem que trazia na mão dois tubos de cola numa embalagem novinha, de t-shirt amarela lavada, que sabia que no dia seguinte o Real Madrid jogaria com o Barcelona e que o Cristiano não está na sua melhor forma.
Faria ele mesmo, isso à sua mulher?
Pensará ele também, que quando alguém vê a Beleza se apaixona por ela?
(...)
Cada dia me parece mais claro que uma parte significativa de nós (ou de mim) não se consegue converter à Beleza! Por isso não se deixa, propositadamente, apaixonar por nada mesmo que tudo ande nu.
A burca integral como forma de evitar paixões é uma visão... hummm... de certa forma poética... porque pressupõe que as pessoas se apaixonam efectivamente pela Beleza e mais ainda que todas as mulheres são belas.
Uma coisa é certa, percebi na sexta-feira que a iniciativa de uma mulher de burca de comunicar está nas mãos dela... pode ser invisível se quiser.
Ouvir falar de Beleza e paixões... perdida no nada... a caminho de uma praia deserta ao lado de um carro avariado... é uma coisa que me faz sorrir, agradecer e calar...
Enfim... um dia escrevo sobre isto se a inspiração surgir e no fundo não foi nada de especial... foi tudo normal fluido e ajustado como teria sido em Espanha, Itália ou Portugal... apenas diferente, um pouco mais sujo, sem macacos hidráulicos, muitos homens a ver, sem preços afixados... e sem montras para passar o tempo ou bolachas para comprar... só bananas grandes a 75 francos e a hipótese de sermos vistas pelos olhares curiosos dos miúdos que vinham da escola e das senhoras que passavam vestidas com negras burcas ou panos coloridos... afinal as estranhas naquela paisagem éramos nós.

E tal como a senhora de burca, estava nas minhas mãos dar conversa ao homem, e dizer-lhe quem sou, através da minha opinião sobre beleza ou táticas futebolísticas... mas nestes sítios apetece-me mesmo é ser invisível... ver sem ser vista. Talvez um dia compre uma burca.

 😲😛😘







sábado, 24 de dezembro de 2016

Estatística...

O pensamento matemático e eu temos uma divergência desconexa que não sei explicar. É tipo aquela parte do cérebro que não trabalha, não porque não pode, mas pura e simplesmente nunca pensámos existir... E depois é como ir ao ginásio um dia e descobrir músculos novos que nunca imaginámos ter... Claro que o cérebro não é um músculo e eu também não encontrei a epifania na "estatística", e ainda assim consigo fazer conexões novas que dão um sentido mais objectivo e palavras diferentes ao que penso. 
A melhor definição de natal encontrei-a ontem numa aula de Excel:
"O Natal é uma frequência absoluta acumulada em que o último valor é sempre igual à amostra."  
No Natal olhamos com mais consciência e gratidão para tudo, os desvios padrão, variâncias ou modas assumem-se como parte integrante da amostra que somos.
E por mim nesta (e em todas) sou profundamente grata a tudo o que todos somaram e subtraíram, na minha vida. 
Os votos de boas festas multiplicados e divididos podem não ser eficazes, originais ou surpreendentes e ainda assim, sendo verdadeiros e sentidos, dão voz ao coração e confortam cada um que os escreve com a gratidão e o amor do tanto bem recebido no fim de cada ciclo. Escreve-los é um acto pessoal e egocêntrico, não os partilhar é um sobranceiro acto de egoísmo.
A todos os "natais" que me trouxeram até aqui, a todas as pessoas que os habitaram e me habitam, a todos os doces e amargos que fizeram da minha mesa um manjar de deuses, a tudo o que brilha por dentro e por fora eu tenho a dizer que vos sinto presentes e sou profundamente grata por isso. 
Abraço forte, demorado e cheio de amor!

Feliz Natal para o mundo... o meu mundo, o teu mundo e todos os mundos e dimensões que desconheço e me surpreendem tal como a matemática.


sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Vento...

É por causa da impossibilidade da visualização do invisível que não escrevo.
Como posso descrever o vento que antecede uma chuva tropical?
Não se vê um vento fresco que entra em todo o lado excitado, espaçoso e aleatório que tem volume e densidade e ao mesmo tempo me deixa leve e fresca quando me toca. 
Como se descreve um vento ágil e limpo que excita os sentidos na surpresa do que há-de vir?
Um vento que agita as palmeiras como fortes e frágeis bailarinas de dança contemporânea, arranca as folhas às papaieiras e ainda assim é redondo e maternal?
E como se falam de relâmpagos luminosos, faíscas sem fim, verdadeiros recordes por minuto, impossíveis de contar, que não são acompanhados por trovões audíveis? Surpreendentes espectáculos de luz e silêncio que me fazem entrar na dimensão da surdez a um ritmo de dança.
E como se falam de trovões que não trazem consigo relâmpagos e assim sozinhos parecem rasgar tudo, fazendo-me sentir pequena, cega e ofegante tal a força do seu grito?
E como falar da chuva? Da chuva que molha, lava, e seca num pestanejar de mulher bonita.
Chove como se mais não pudesse acontecer noutro dia, e também chove com doçura, abundância e serenidade como se todo um céu estivesse uniformizado num chuveiro imenso completamente calibrado e regular.
Ficam sulcos profundos na terra feitos pelas corridas das águas. Rugas de expressão de uma terra corada, que imagino feliz por se ver habitada. Ficam mais verdes os verdes, mais vermelhos os vermelhos, tudo fica alguma coisa mais... Garantidamente mais molhado, apenas no imediato.
Os cheiros e a temperatura são invisíveis e tão concretos que não há adjectivos, só sentidos.
E quando a chuva vem ao final do dia o céu ganha um fundo cinza iluminado por uma luz quente... E fica mais perto da terra. Sim, é isso que não consigo descrever de outra maneira... Há dias aqui em que o céu fica mais perto da terra.
Ontem foi um destes dias.

Palavras...

A realidade e o sonho nos mesmos corpos, nos mesmos olhos... Na mesma boca!
Aqui as pessoas amanhecem e as árvores falecem.
E pela manhã o "bom dia" é substituído por uma pergunta, o interesse em saber: como amanheceste?
Se a conversa dura e eu preciso de saber onde fica o sítio para onde quero de ir daqui a pouco... Recebo como indicação que é perto, ali ao lado do "falecido pé de mango".
Gosto da ideia de ser sol, da ideia de as árvores serem pessoas e gosto das tantas coisas que se dizem aqui que ajudam a desconstruir ou a construir a minha realidade! Estas não são as figuras de estilo da literatura... São figuras vivas de pés calejados e sorrisos matreiros que pensam de forma diferente da minha, reagem e sentem de forma diferente... Porque vêem o mundo de forma diferente, porque "falam" o mundo de maneira diferente.
A globalização pode chegar nos telemóveis, nos carros ou nas calças de ganga... Mas ainda não chega à forma de "falar" o mundo, e isso surpreende-me e agrada-me todos os dias. E também me faz calar todos os dias.
Que "anoiteçam" todos bem é o que eu desejo, e quando eu passar perto do falecido pé de mango invocarei aquela alma que proporcionou durante anos as melhores mangas do mundo, alimentando quem, com uma cana comprida se lança ao longo píncaro, que suspende no alto, o fruto doce e carnudo que nos lambuza a boca e os sentidos. Como as palavras...





Flores...

Na Guiné-Bissau o dia 2 de Novembro é o dia dos mortos. Há romaria aos cemitérios e levam-se coroas de papel colorido em vez de coroas de flores.
Eu gosto de flores mas aqui não há flores... Da forma como as encontramos em Portugal, nos campos ou nas lojas... e por esses inícios de Novembro comprei duas coroas de papel colorido que pendurei nas paredes da sala.
Hoje a Deolinda disse-me meia hesitante apontado para uma das coroas:
- Cláudia, sabes que isso é para colocar nos cemitérios não sabes?
Eu disse que sim que sabia, e expliquei-lhe que gosto das cores e imagino ter penduradas flores na parede. Gosto de flores e fazem-me falta... que os cartazes que coloco não duram muito por causa das ventoinhas...
Ela ficou a rir calada e eu acrescentei: e sabes Deolinda eu não fui ao cemitério ver os meus mortos, normalmente não vou, sabes porquê? Porque os meus mortos estão sempre comigo. Não estão enterrados, nem estão longe, estão aqui e agora ao pé de mim e eu acho que eles também gostam de ver as coroas de papel colorido nestas paredes.
Ela voltou a sorrir com vontade e disse: -Imaginava que me ias responder assim. E continuou a rir.
Perguntei se lhe fazia diferença ver as coroas. Sorriu, claro que não, ela também gosta de flores e plantas e só tem pena de não ter espaço em casa para as cultivar.

Fiquei a pensar, gostamos as duas de flores, acreditamos na comunhão dos santos e rimos juntas das nossas diferenças! Percebo que ela me acha um pouco estranha e ainda assim adivinha o meu pensar... até é bom ser estranhamente previsível para alguém com quem partilho uma pequena parte da vida. Para mim chama-se a isto "estar em casa".

Conversas que tenho comigo

Há uns dias ouvi falar sobre públicos de cinema num sítio onde não há uma sala com programação regular ou onde os filmes não se apresentam ...